sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Os outros

Nos outros tudo tem valia, o traço, o rastro, o jeito, tudo. Avalia ele os outros positiva e entusiasticamente, enquanto a mim, sobram migalhas. Sua atenção se despedaçada pr´outros, para mim é resquício vago de presença, divide-se em muitos, e sobra-me o nada, enquanto despeja sua energia noutros, despendo-me outro, quisera; para tantos e para muitos é o artista novo, e para mim, família, contudo longe e distante, sua forma acrônica de amar é quebradiça, ora inexistente, se tem amor, passou longe da minha rua, se tem ódio, recai sobre mim sua faceta mais verdadeira e dolorosa, choramingando feitos errados, fatos irrelevantes, é a mim que recorre quando amanhece, é sobre meus ombros fartos que se encolhe, com açúcar com afeto mingua, na letra da canção me vejo vindo ao amparo, mesmo que desamparado. O infortúnio do seu amor é raiva, range a estrutura sólida inundada numa enchente que não tem fim. Afinal, santo de casa não faz milagre. O vago e distante é sempre melhor, pelo menos pra você.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Despendido

Mediante esclarecimento notório, trocou a fala pela não fala, o gesto pela contenção, o dilúvio pela sequidão, e assim passou nu no corredor de embate, sentou-se no sofá diante de um bilhete extremamente duvidoso disposto no coffee table, nada perguntou a ninguém, e com ligeira pressa leu-o tranquilo. Era homem vestido de um azul aveludado no casaco, e jeans rasgado na altura dos joelhos, da mochila tirou uma pequena câmera amarela para fotografar a cena do crime e partiu num táxi demorado.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

miraculosa viagem

estava afastado com as mãos meticulosamente afastadas entre si, e da mesa de café diante de seu corpo, por mais que insistisse em permanecer ereto, as mãos ditavam a distorção, seus olhos contribuíam para a curvatura nada sublime, e seu buço recolhido de suor deixava-no inquieto e desalinhado, por horas permaneceu trêmulo atento às vozes metálicas que anunciavam o voo. Partir em breve seria entrar dentro da Terra e permanecer não breve, longo, distante e distorcido mais ainda, num ninho de feno desconhecido. Iria para onde, não me avisou, nem me recorreu um abraço de partida, tomou seu táxi e foi, indo como um pássaro, lindo como um feio, feito um silêncio desconcertante. Até que a mulher anunciou: senhores passageiros com destino ao desconhecido, favor embarcar no portão 8 imediatamente. Levantou-se de súbito, andou desajustado, como se todos ali julgassem-no viajante desmedido e iniciado nos voos internacionais, tentou não olhar para o lado, tampouco pensou em arrumar o botão do casaco que fora preso na casa errada, deixando-o assimétrico e, novamente, desalinhado, partiu emotivo e seco, por dentro fervilhava, por fora mantinha a face intacta, olhos diretos e mãos presas. Torcia para chegar logo, nem pensara nas horas de viagem a enfrentar, dormiria, leria, poria as mãos sobre as pernas santamente como um deus movido de paralisia. Era o viajante mais vil da aeronave vermelha e branca. Servem vinho aqui? Movimentou-se doídamente para alcançar sua poltrona, movimentou-se doidamente para guardar sua mochila, e marcou a hora para contar as horas de voo etéreo. Aéreo sorriu para a aeromoça. Miserável contou suas cédulas na carteira de couro marrom, mediu-se diante dos outros, julgando-se jovem, inexperiente e enrubescido de ansiedade. Adormeceu anjo, acordou demônio. Viu sob as nuvens espalhadas tingidas de cinza um raiozinho de sol, depois, mergulhou nos pensamentos, nos planos de viagem, na vaga memória das pessoas que ficaram, aflitas ou confortáveis, singelas ou desesperadas. Parentes Pedro e Marli disseram-no que enviassem um cartão, amigos Ângela e Jaci pediram-no telefonemas quentes, vizinhos Vaz e Darcy imploraram-no uma lembrancinha. Sabia ele que descumpriria toda e qualquer forma de contato e dever. Milagrosos seriam os dias de desajuste numa sociedade outra, numa casa vazia, num chão irreconhecível. Partiria um, voltaria outro, ainda que os dias de solidão na nova Terra aproximassem dele ele mesmo. Era assim, uma viagem miraculosamente santa.