domingo, 27 de junho de 2010

o amor dos outros

ela sentada sente e chora ao lado de uma frazada desgastada.
me diz do amor que sente, me diz do amor que esquece.
o dela e o meu.
ao final, tudo igual.

terça-feira, 18 de maio de 2010

já me esqueci

passei um bom tempo olhando pra você dentro da minha cabeça, e tem um dia em que me encontro de novo, no velho, no vão do velho. Passei um bom tempo apagando você dentro da minha cabeça e me desesperei em segundos, minutos largos, horas. Já tem dias que os dias são feios, feitos para serem esquecidos. Olhei pra você dentro da minha cabeça e me esqueci da minha própria cabeça. Tem dias que já me esqueci. Tem dias que já me esqueceram. Todo o tempo passado no passado rasgo. Todo tempo futuro no futuro abro mão, só não o abro do tempo em que passei um bom tempo olhando pra você dentro da minha cabeça. Bom é o tempo de esquecer, melhor ainda é o tempo de recordar. Tem recordações que são rochas, outras são vento, outras nem sequer existiram, me esqueci do tempo em que te esquecia.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Comadre

Comadre
Elis Regina
Composição: João Bosco / Aldir Blanc

Em tudo que me acontecer
O dedo da comadre tá
Na corda quando escurecer
Anágua da comadre tá

Branco de doer
Me convidando a imaginar
Se o vento bater
A ginga que a comadre dá

A ginga da comadre tá
Em tudo que me acontecer
No copo que eu me embriagar

Se relampejar,
se eu adoecer
Se a febre aumentar
A comadre vem, vem, vem

Na palha que eu adormecer
Nas águas em que eu me lavar
E na pitanga que eu morder
Na arapuca que eu armar

Onde eu me esconder
Em tudo quanto eu puder olhar
No que ouvi dizer
A ginga que a comadre dá

No samba que eu me exceder
No doce que eu me lambuzar
Na hora que eu endoidecer

Se o sangue espirrar
Se a ferida arder
Se a boca chupar
A comadre vem, vem, vem

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Os outros

Nos outros tudo tem valia, o traço, o rastro, o jeito, tudo. Avalia ele os outros positiva e entusiasticamente, enquanto a mim, sobram migalhas. Sua atenção se despedaçada pr´outros, para mim é resquício vago de presença, divide-se em muitos, e sobra-me o nada, enquanto despeja sua energia noutros, despendo-me outro, quisera; para tantos e para muitos é o artista novo, e para mim, família, contudo longe e distante, sua forma acrônica de amar é quebradiça, ora inexistente, se tem amor, passou longe da minha rua, se tem ódio, recai sobre mim sua faceta mais verdadeira e dolorosa, choramingando feitos errados, fatos irrelevantes, é a mim que recorre quando amanhece, é sobre meus ombros fartos que se encolhe, com açúcar com afeto mingua, na letra da canção me vejo vindo ao amparo, mesmo que desamparado. O infortúnio do seu amor é raiva, range a estrutura sólida inundada numa enchente que não tem fim. Afinal, santo de casa não faz milagre. O vago e distante é sempre melhor, pelo menos pra você.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Despendido

Mediante esclarecimento notório, trocou a fala pela não fala, o gesto pela contenção, o dilúvio pela sequidão, e assim passou nu no corredor de embate, sentou-se no sofá diante de um bilhete extremamente duvidoso disposto no coffee table, nada perguntou a ninguém, e com ligeira pressa leu-o tranquilo. Era homem vestido de um azul aveludado no casaco, e jeans rasgado na altura dos joelhos, da mochila tirou uma pequena câmera amarela para fotografar a cena do crime e partiu num táxi demorado.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

miraculosa viagem

estava afastado com as mãos meticulosamente afastadas entre si, e da mesa de café diante de seu corpo, por mais que insistisse em permanecer ereto, as mãos ditavam a distorção, seus olhos contribuíam para a curvatura nada sublime, e seu buço recolhido de suor deixava-no inquieto e desalinhado, por horas permaneceu trêmulo atento às vozes metálicas que anunciavam o voo. Partir em breve seria entrar dentro da Terra e permanecer não breve, longo, distante e distorcido mais ainda, num ninho de feno desconhecido. Iria para onde, não me avisou, nem me recorreu um abraço de partida, tomou seu táxi e foi, indo como um pássaro, lindo como um feio, feito um silêncio desconcertante. Até que a mulher anunciou: senhores passageiros com destino ao desconhecido, favor embarcar no portão 8 imediatamente. Levantou-se de súbito, andou desajustado, como se todos ali julgassem-no viajante desmedido e iniciado nos voos internacionais, tentou não olhar para o lado, tampouco pensou em arrumar o botão do casaco que fora preso na casa errada, deixando-o assimétrico e, novamente, desalinhado, partiu emotivo e seco, por dentro fervilhava, por fora mantinha a face intacta, olhos diretos e mãos presas. Torcia para chegar logo, nem pensara nas horas de viagem a enfrentar, dormiria, leria, poria as mãos sobre as pernas santamente como um deus movido de paralisia. Era o viajante mais vil da aeronave vermelha e branca. Servem vinho aqui? Movimentou-se doídamente para alcançar sua poltrona, movimentou-se doidamente para guardar sua mochila, e marcou a hora para contar as horas de voo etéreo. Aéreo sorriu para a aeromoça. Miserável contou suas cédulas na carteira de couro marrom, mediu-se diante dos outros, julgando-se jovem, inexperiente e enrubescido de ansiedade. Adormeceu anjo, acordou demônio. Viu sob as nuvens espalhadas tingidas de cinza um raiozinho de sol, depois, mergulhou nos pensamentos, nos planos de viagem, na vaga memória das pessoas que ficaram, aflitas ou confortáveis, singelas ou desesperadas. Parentes Pedro e Marli disseram-no que enviassem um cartão, amigos Ângela e Jaci pediram-no telefonemas quentes, vizinhos Vaz e Darcy imploraram-no uma lembrancinha. Sabia ele que descumpriria toda e qualquer forma de contato e dever. Milagrosos seriam os dias de desajuste numa sociedade outra, numa casa vazia, num chão irreconhecível. Partiria um, voltaria outro, ainda que os dias de solidão na nova Terra aproximassem dele ele mesmo. Era assim, uma viagem miraculosamente santa.