segunda-feira, 18 de agosto de 2008

São Jorge Power (NÃO TERMINEI)

Se enamora com o vento, se demora com o tempo, tempestivo e alegre zoa, sua fome felicita a miséria de outrem e seu erro reorganiza sua memória. No chão de flores amarelas abandonadas convive com a transitoriedade de uma vida vã, que voa cada minuto além do que pode alcançar, não tem controle de nada, mas vive. Diz-se que é um homem de testa curta, mão de ferro, um verdadeiro guerreiro, mas a verdade é que é tímido, e tatua no corpo uma coragem também tímida, que está aquém do que se precisa para se manter em pé, por favor não o olhem na face, tem olhos que trincam os nossos, tem um peito pungente que faz chacina dos nossos, tem uma faca escondida, e palavras perfurantes sob um canto de águia que sabe imitar copiosamente bem; hoje come voraz a comida no boteco, olha com olhos de lobos mulheres na calçada, bebe como louco uma cachaça e meia, mente pra gente, engana a gente, corrompe os bons, e com os bens faz algazarra, é mesmo um estuprador público. A polícia diz que dá recompensa pra quem adivinhar pra onde ele tá indo, pra que terra ele vai fugir, por qual canyon ele vai passar, com que carro vai, com quem, quando, que horas, querem armar emboscada sangrenta, cortar a cabeça e erguer no pódio do massacre, ou colocar na escadaria na Igreja de Nossa Senhora das Dores, donde matou quinze em quermesse e foi proclamado santo dos vadios, chefe dos pistoleiros, o demônio das redondezas. Eu bem sei que esse cabra vai fugir pra São João do Egito, mas falar seria muita covardia, eu sei de tudo, mas eu não arrisco minha cabeça por dinheiro algum, eu sei que se eu falasse ele mandaria cabra vestido de demônio pra tudo quanto é lugar que eu fosse, então eu não sei de nada, Dona Zélia tampouco, ela disse que Titinha vai falar, porque não quer que filha dela, moça dereita, criada pelo saudoso Capitão Oristide, vá com bando catinguento que não presta. Eu vou falá e quero tê o prazê di cortá a cabeça desse cabra fidaputa. Isso vai dar show apocalíptico, um estardalhar, uma batalha homérica em terras nordestinas, um monte de sangue vai banhar o véio Chico, e os peixes vão sair tingidos de vermelho bem vermelho, não quero nem ver... Noutro dia bem cedo, enquanto arrumava seu opala velho, punha pistola e tudo no porta-mala, carregava são jorge no pára-choque, um santinho daqueles que cola, o sol raiava nordestino e forte, marelento, vinha pela frente um dia seco, o suador no cabra começou cedo, mas ele tava certo de que quem soubesse seu destino, não ia denunciá não, porque eu mato! Titinha ligou pra polícia: São João do Egito, vai levá minha fia junto! Mata o hómi. Carros e mais carros de polícias seguiram rente, estrada quase vermelha de fogo, de terra batida, de terra sem beber há mais de um ano, o cabra ia feliz com a filha de Titinha e Relâmpago, braço, mão, dedo direito, tudo de confiança era o Relâmpago, eles seguiam pra São João do Egito tão logo, que ia ficar tarde. A filha de Titinha tangia pelos lados, feliz, o timbre de sua voz era estampido naquela tarde: óia a polícia! Tratou de acelerar o mais que podia, o carro obedecia raivosamente com rumores de que uma emboscada estava pela frente, cada arrancar dos pneus marcava duro o chão, sobrepunha camadas de terra com a poeira que se assentava, os policiais perseguidores corriam, corriam, corriam, e o homem brabo, ferro do agreste com peixeira e escopeta se dispunha poderoso e invencível, Relâmpago gritava tão alto, dava instruções, olhava pra trás, jamais se renderia. Gritava a correria, à perseguição o sol iluminava duro, e certeiro como flecha, a gente podia ver bem na cara desses três baderneiros faces fatalistas, talvez facadas os pusesse em luta, talvez um tiro certeiro matasse um e desesperasse os outros, talvez o pneu furasse e todos os três fossem juntos correr e correr pela vegetação ainda que rasteira e falha, ainda que o esconderijo não fosse dos melhores, os três poderiam sumir bem rápidos e pés com asas por dentre pedras e pedregulhos afiados, fatais. Talvez a polícia se perdesse no pó, na poeira quase atômica que o cabra macho levantava raivoso, quem há de me perseguí não há de tá em paz, vai sê condenado pelo próprio feito, praguejava e praguejava pensando em São Jorge como escudo e inspiração, todo o mais ao seu redor, durante a reza, era silêncio, tinha uma cabeça boa pra se concentrar e pedir ao santinho que sempre lhe ajudou e hoje não devia faltar. Minha mãe que ensinou a reza, trabalhadeira e crente na Virge e no Santo, morreu triste quando os gado morreu, tinha de criá a gente, nosso pai que era dado por perdido veio nos buscá, e nos levou pra luta, pra arena, que hoje é meu circo e meu lençol. Palavras bonitas assim foram ensinadas por um repentista, um sujeito misterioso que o ensinou a ler, dava-lhe coisas belas e cantigas antigas, que até hoje sabe de cor. Com esmero e uma delicadeza espantosa, ele às vezes cantava algumas no ouvido dela, que exibia dentes afiados, toda risonha que só ela, e ele gostava de ver os furinhos que surgiam quando ela ria com fitas amarelas no cabelo, um cabelo encrespado, empoeirado, cheirinho de terra e nózinhos, caracóizinhos, emolduravam um rosto bonito demais, porcelanoso demais pra quem vive nessas bandas de cá, tinha por ela um sentimento bom, que o fazia desconhecer a si próprio às vezes, mesmo quando se pegava olhando rabos de saia, era ela que logo vinha à cabeça, é que pra se vê, é difícil, Titinha segurava a menina à rédeas e rezas, chegou até a amarrar a menina na cama que era pra não sair no dia em que ele ia ao palanque do Zé das Trincheiras, candidato a deputado estadual, ex-companheiro de luta, homem tinhoso e fraudulento, um verdadeiro cacto cru. Ela gosta dele. Ela se contorce por ele, e aquele dia teve os pulsos em vergão porque se remexia toda a tadinha que queria vê-lo, ele que havia comprado um carro velho e lhe trouxera um perfume, comprado em botequim chique. Chorosa que nem ela, ficou com olhos todos vermelhos, Titinha aumentava som que era pra não ouvir os berros, e nem os vizinhos. Dona Zélia chegou a perguntar, é nada Zélia, ela acordou triste, minha fia. E passou meses tristes, porque ele achou que ela não queria mais ele, não foi ao encontro, não deu as caras, toda atada a pobrezinha. Mas quando se encontraram, em compensação, foi pirotecnia no agreste, fervilhavam os corpos de ambos de vontades e de pecado, as bocas se atracaram secas e firmes como um prego martelado em madeira, firmes! Trocaram juras, meu pitéu, meu fogo vermelho, meu céu de dia chuvoso, coisa assim até mais. Quanta boniteza! Titinha podia nem imaginar, ia enfurecer que nem capeta, ia pegá-la pelos cabelos e surrar a bonequinha. O homem então propôs a fuga, que nem de cinema? É, amor. Eu vou, pois ela foi. Relâmpago foi buscá-la na porta de casa, Titinha até apareceu com uma tora de madeira às mãos, ia dar cacetadas, mas os dois zarparam tão logo, que vizinho nenhum viu. O carro segue longe, a polícia mais atrás come poeira, pretende matar todos a tiro e cortar a cabeça do testa de ferro, aquele que é desordeiro e infernal, o pau nele! Todos se lembram da vez em que ele pra vingar morte de primo, companheiro desde infância, mercador viajante, ele fez Renato das três porteiras lamber chão, comer espinho e como gran finale cortou sua cabeça na frente da família, mulher, bebê, criança, um choramingar musical que lhe arrancava risinhos demoníacos, ele não é santo coisa nenhuma, mas quando quer, é honrado e bondoso, bem quando quer, depende do humor e do amor, do coração que às vezes é tão empedrado... Esse hómi faz chão tremê, faz céu caí, faz chuva dá meia volta, é ditado, coisa assim, quando ele chega: agora de carro ele corre, com a filha da Titinha ao lado e Relâmpago ele bem que poderia morrer bem, mas primeiro quer matar. Não deixo nem herança nem dívida, mas deixo estória. Queria que na lápide estivesse marcado quantos cabra enfrentou, com coragem de homem santo, com cara erguida de cavalheiro, com postura de cavaleiro, grã-fino das mortes. Mas mato, mas amo. Quando olha pra moçoila, acho que fica repartido entre ódio (que lhe é próprio) e amor (que lhe é de outrem e de outrora), ele tem um bem na alma, quando beija aquela boquinha, ele se desarma todinho, e ela também, moça ruim, alguns vão dizer, deixou mãe e irmãos pra fugir com homem desses, não cuidou da avó nem da vizinha no leito da morte, só quis gozar. É nada, é moça dereita, quietinha que foi picada pelo bicho ruim que é o testa de ferro, homem que com parte com capeta aterroriza as redondezas. Cada um diz uma coisa, ninguém entende. Mas é assim, no ante-morte dá dó ver a troca de olhares deles, não deixa eles pegá a gente, não deixo não; dito e feito, o carro parecia que ia voar cada vez mais, São João do Egito não estaria longe, lá eles tinham comparsas, e em guerra armada bem provável que vencessem, se tivesse emboscada aí era outra coisa, Relâmpago, homem sábio, dizia que não, que emboscada de milico é burra, sabem manejar máquina, mas não natureza, e São João do Egito é pura caatinga, terra do nada, que pra eles é tudo, lá tá enterrada a mãe do cabra, lá tem estátua de São Jorge que diz que é milagrosa, lá tem um céu que faz nossa cabeça entontecer, queria levar a moça pra ver, pra pagar promessa junto, pra casar. Se fosse pega, pela polícia, a moça, de certo seria estuprada, violentamente violentada, o cabra só de pensar nisso pisou mais fundo, eu vou pro inferno com essa carro mas não páro. E coisa nenhuma o faria parar. Relâmpago relinchou de euforia! A filha de Titinha olhava pra trás e pra frente, pra frente e pra trás, alternava medo e frio na barriga, olhava pro cabra, fitava seus cabelos desgrenhados, seus olhos retos, rentes, roucos. Sua camisa ainda meio suja de tecido barato balançava a gola, ele mordia o lábio, mostrava dente, carcava o pé no acelerador. Que perseguição! São João do Egito ia aparecendo lá no fim da estrada, perto de uma caixa d´água grande seca.

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